quinta-feira, 5 de julho de 2007

1º Conto - "Sandra e Carlos" (Parte 1)

Quando Sandra entrou no gabinete, tive logo a vaga sensação de que aquela cara não me era estranha, mas não disse nada. Depois do habitual cumprimento, dezenas de vezes ouvido durante todos os dias, convidei-a a sentar-se. Com um sorriso perfeitamente natural, aceitou o convite escolhendo a cadeira que estava mais à sua direita, a quarenta e cinco graus do meu raio de acção se estivesse a olhar para a porta. Cruzou as pernas, agora sim de uma forma estudada, deixando que a saia que vestia deixasse a descoberto um bom palmo da perna que se adivinhava tão bem tratada como cuidada. Tudo condizia, o seu rosto, o cabelo, … na minha frente estava uma mulher na casa dos trinta, bonita, atraente, que sabia muito bem o que queria e como o conseguir. Sorriu e contou ao que vinha.
- Dr. Carlos, talvez o meu caso não seja igual a qualquer um que já tenha defendido. Foi uma amiga quem mo indicou e espero que me ajude a resolver o problema.
- Sabe que os casos, mesmo parecendo iguais, têm sempre alguma coisa que os torna diferentes; os contornos nunca são iguais, o que à partida os torna diferentes.
- Sim, mas neste caso, talvez que até os contornos sejam diferentes, acho até que só a finalidade venha a ter alguma coisa de comum com aqueles a que foi chamado a resolver.
- Só depois de ouvir poderei ter opinião – disse-lhe.
- Então, não percamos mais tempo – disse Sandra.
E contou-me a causa da sua visita: vivia num bloco de apartamentos não muito longe do centro da cidade, mas suficientemente afastado do movimento habitual das grandes cidades. O exercício da sua profissão, obrigava-a a chegar a casa a horas pouco normais e, muito embora nunca tendo sido perseguida ou incomodada quando regressava a casa, a verdade é que sentia sempre um certo receio quando se aproximava da porta de entrada do bloco onde residia. Os poucos lugares de estacionamento raramente lhe permitiam deixar o carro à porta de casa, receando sempre caminhar a centena de metros que era obrigada a percorrer, quando saia do carro a caminho do bloco de habitações onde residia, não obstante as horas tardias a que normalmente cumpria esse ritual. Na verdade não era isso que a incomodava, o seu problema nascia quando chegava a casa e pouco depois de fechar a porta atrás de si, o telefone tocava e do outro lado só ouvia sons indecifráveis, imperceptíveis, como se o autor da ligação estivesse a gemer, um gemer um tanto ou quanto diferente, porque não era um gemer de dor, antes um gemer incómodo, como que ameaçador. Não ouvia uma única palavra, apenas esse gemer estranho. Ao princípio não ligou muita importância, mas com a repetição contínua sempre que chegava a casa, começou a ter medo.
- E isso só acontece quando chega a casa? – quis saber.
- Segundos depois de fechar a porta – disse Sandra.
- Sinal de que quem estabelece essas ligações a vê entrar. Tem gravador de chamadas?
- Sim tenho e quando vou ouvir as mensagens do dia, nunca tenho uma que seja com essas características.
- Temos portanto a certeza de que quem faz essas ligações a vê chegar a casa. Outra pergunta - o bloco onde reside é isolado ou há mais?
- Há mais, quase colados – disse-me ela.
- E enquanto caminha a pé costuma ver luzes acesas?
- Sim, algumas estão acesas mas isso não quer dizer que esse meu vizinho - parece ser efectivamente um vizinho - esteja com a luz acesa,. antes pelo contrário, deve estar às escuras, não apenas para ver melhor mas também para não despertar atenções.
- E há quanto tempo isso acontece?
- Há um mês, aproximadamente.
- E para além desses telefonemas, não percebeu outro qualquer sinal? Por exemplo, uma carta na caixa do correio, um carro atrás de si quando sai de casa, um contacto no seu local de trabalho?
- Não, durante o dia, tudo corre normalmente.
- Vai desculpar-me a pergunta, mas é inevitável que lha faça - marido, ex-marido, ex-namorado, como está a sua vida sentimental?
- Olhe Doutor, há quase um ano que cortei com esses complementos, se é que entende o que quero dizer. Estou divorciada há alguns anos, já tive um ou outro namorado, mas de momento não tenho ninguém, nem estou a ver qualquer um desses ex a espiar-me só para saber quando chego a casa e fazer então esses telefonemas que me estão a pôr maluca, é o termo.
- E quer então que eu descubra o autor e o processe.
- Nem mais nem menos, a insistência e a regularidade desses telefonemas estão a dar cabo do meu sistema nervoso. Pior, começam a perturbar negativamente o meu rendimento no local de trabalho.
- Vamos então combinar o seguinte, hoje, vai fazer como habitualmente e se o telefone tocar, quando chegar a casa, atende e não diz nada. Deixa o auscultador fora do descanso, vai fazer o que costuma fazer quando chega a casa e passados uns minutos vai ouvir se a ligação ainda está estabelecida ou se ele ou ela desligou. Amanhã telefona-me a dizer o resultado. Aqui tem o meu cartão, onde está também o meu particular. Pode ligar a qualquer hora, pois vivo sozinho.
Ela aceitou a sugestão, levantou-se, compôs a saia e preparou-se para sair. Antes de atravessar a porta, consegui descobrir, vendo-a por trás, que se tratava de uma mulher na plena acepção da palavra e suficientemente atraente para provocar a qualquer homem uma tentativa de aproximação.
No dia seguinte esperei pelo seu telefonema, que chegou cerca das duas da tarde, logo que, no meu entender, terá chegado ao seu local de trabalho.
- Então, que aconteceu? – perguntei-lhe.
- A mesma coisa.
- Chegou a casa a que horas?
- Deviam ser duas da manhã.
- Fez o que lhe pedi no que diz respeito ao auscultador?
- Sim, exactamente.
- E então?
- Não desligou.
- A que horas sai hoje?
- Hoje vou sair um pouco mais cedo, por volta das 8h da noite.
- E tem planos?
- Não, vou jantar e sigo para casa.
- Posso convidá-la para jantar?
- Porquê?
- Porque quero tirar mais umas conclusões e depois de jantar vou consigo até sua casa, deixo-a à porta para sabermos se ele ou ela, vendo-a acompanhada, também telefona.
- Mas se ela – a pessoa, entenda-se – o vir depois ir embora, fica a saber que subo sozinha.
- Bem observado! Resolveremos isso na hora. Aceita o jantar?
- Só se for eu a pagar – disse Sandra.
- Resolveremos isso na hora.
Combinámos a hora do encontro, o restaurante onde iríamos, tendo ficado com a certeza de que, ao contrário do que era habitual com as senhoras, ela não iria chegar muito atrasada.

------trecho escrito por Orlando ------ (continua)

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